E N T R E V I S T A
“A memória é semente de
pertencimento.”
Nascido em Ibicaraí, Clóvis Silveira Góis Júnior construiu uma trajetória que entrelaça fé, memória, serviço e palavra. Leitor voraz, pesquisador dedicado, servidor público da Justiça do Trabalho há mais de três décadas e profundo conhecedor da história da região cacaueira, Clóvis é alguém que escreve para que o tempo não apague e para que as novas gerações saibam de onde vieram.
Casado com a pedagoga
Iara Souza Setenta Góis e pai de Felipe e João Marcos, sua vida familiar é
espelho daquilo que aprendeu na infância: valores como respeito, honestidade,
solidariedade e temor a Deus. Esses mesmos princípios estão presentes em seus livros,
nos perfis digitais que administra, como o @historiagrapiuna, e nos tantos
registros que vem produzindo com esmero e constância.
Autor de A Gênese do Adventismo Grapiúna (2016), Sequeiro do Espinho: passos de um conflito (2020) e A História de Itabuna em 1.300 eventos cronológicos e ilustrados (2025), ele ocupa a cadeira nº 34 da Academia de Letras de Itabuna (ALITA), cujo patrono é o jornalista, político e escritor Jorge Calmon.
Nesta entrevista, a mim concedida com a dedicação que lhe é característica, Clóvis revela lembranças vívidas da infância em Palestina (Ibicaraí), fala sobre o papel da fé em sua formação, da influência dos pais, do amor pela história, da sua devoção à verdade, e da certeza de que “quem não vive para servir, não serve para viver”. O resultado é um retrato bonito e sincero de um homem que se comprometeu a deixar como legado não apenas livros, mas exemplos.
Raquel Rocha (RR):
Clóvis, você nasceu em Ibicaraí, mas carrega consigo todo um território
simbólico da Região Grapiúna. Que imagens ou memórias da infância mais marcaram
sua trajetória de vida?
Clóvis Júnior (CJ): Eu sou um pouco de tudo que vivi na meninice. Fragmentos de minha infância teimam em brotar nas minhas reflexões e ações. Pedaços do meu passado saltam a todo instante no meu caminho. Louvo ao Eterno por serem reminiscências
aprazíveis e saudáveis. A feira livre da antiga Palestina. Os animais de carga
descansando num curral circunvalado entre o leito do rio e o fundo do edifício
do Cine Teatro Ana; esse redil, guardava as bestas, enquanto seus proprietários
negociavam seus pertencentes na feira. Naquele ambiente vi e aprendi coisas
inimagináveis para crianças de tenra idade. A beira do rio Salgado,
principalmente em momentos de cheias, entre os meses de novembro e janeiro. O
jogo de bola em campos improvisados e em locais ermos (futebol de várzea), onde
quase sempre eu era o goleiro ou, quando dono da bola, poderia até ser
convocado para jogar na linha. O cheiro do cacau mole nos cochos ou das
amêndoas a secar na barcaça de pequena propriedade rural da família. O banho no
ribeirão do Luxo, corrente d'água cristalina, piscosa e doce. A chuva intensa,
quase o ano todo, a ponto de fazer suar as telhas de barro. As noites eram
belíssimas, frescas, cheirosas, com mantos verdes de gafanhotos sobre os
postes, atraídos pela energia elétrica, e mantos luminares de pirilampos (hoje
quase extintos) a imitarem, na terra, estrelas do céu. Me pego ainda ouvindo os
antigos conversando suas experiências, suas aventuras, suas mágoas, suas
bravatas …
RR: Seu discurso de
posse na ALITA traz um tom confessional e poético. Nele, você fala do cheiro do
cacau seco, da jaca madura e da terra molhada. Que significado esses elementos
têm na sua construção pessoal e literária?
CJ: Eu projeto o mundo
hodierno, com base no meu antigo quintal. Aquele início comezinho e pueril
delineou minha vida quase que por completo, deixando pouco espaço para adições
do presente. Construo minha estrada dando passos para frente e também olhando
para trás. Neste ponto penso como o poeta Manoel de Barros: “Sou hoje um
caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar
no meu quintal vestígios dos meninos que fomos”.
RR: Como sua família,
especialmente, seus pais contribuíram para a formação do seu caráter e do seu
olhar sobre o mundo?
CJ: Não consigo entender
ou divisar um mundo justo e saudável sem que todos seus participantes exerçam
princípios éticos. Aprendi em casa, no seio da família, o respeito, a lealdade,
a honestidade, a equidade, o amor ao próximo, a solidariedade, o temor a Deus
etc. Nunca ouvi meus pais pronunciarem qualquer palavra torpe, nunca. Uma
certa feita, acompanhando meu pai à feira, encontrei, embolado no chão, uma
nota de um cruzeiro. Meus olhos brilharam de alegria, prontamente meu pai
ordenou que deixasse a cédula onde estava, pois o dono poderia vir ao seu
encontro; tirando outra nota idêntica do bolso me restituiu aqueloutra. Pode
existir um mulher-mãe igual a minha em zelo, trabalho, honestidade e
preocupação com a prole, duvido que no universo inteiro exista outra maior. Não
recebi um único bem material deles, nenhuma herança físico-monetária, porém
seus princípios suplantam a tudo.
RR: Em que momento a fé
e o amor pela história começaram a caminhar juntos na sua vida?
CJ: Em 2016, com a
escrita do meu primeiro livro.
RR: O que mais o motivou
a escrever A Gênese do Adventismo Grapiúna ?
CJ: A lacuna na
historiografia. O Movimento Adventista estava presente na Região Cacaueira
desde 1908, sem que existisse um escrito que relatasse a incursão dos primeiros
missionários sabatistas nas roças de cacau.
RR: Em um depoimento seu
sobre a Gênese do Adventismo Grapiúna, você afirmou que “cada pioneiro que
morria levava parte da nossa história para o túmulo”. De onde vem esse impulso
por registrar o que poderia ser esquecido?
CJ: Em minhas pesquisas,
descobri fatos que ninguém conhecia, tanto no universo de membros da Igreja
Adventista (7.000 membros em Itabuna e
5.000 em Ilhéus), como na Região Cacaueira (centenas de milhares de habitantes).
Histórias interessantíssimas, curiosíssimas e importantíssimas (de propósito
utilizo o superlativo absoluto) caíram na vala do tempo ou foram sepultadas
pela areia da história. Imbróglios políticos e sociais enormes seriam
entendidos – e quiçá, resolvidos – se soubéssemos suas origens. Mas suas
gêneses não mais existem. É necessário conhecer o passado para se responder
perguntas e questões do presente. Se seus atores e protagonistas morrem, sem
registrar ou contar o que ocorreu ou como aconteceu, e aí como fica?
RR: Como você percebe o
papel da escrita como meio de resgate identitário e espiritual dentro da sua fé
adventista?
O membro de qualquer
denominação religiosa somente consegue amar e se esmerar em seu mister quando
conhece aquele sacerdócio. Como dedicar sua vida, seu tempo, seu talento, e seu
dinheiro em algo vazio que não sabe de onde veio nem para onde vai? Você só ama
verdadeiramente aquilo que conhece. Eu amo a Cristo porque sei o que fez por
mim, que abdicou do trono do universo, que se fez homem e quedou-se numa rude
cruz em meu favor. Como não amar alguém que me ama tanto? Assim acontece do
ponto de vista terreno. Você só ama aquela agremiação que se sente pertencente.
Aí entra o conhecimento histórico. O conhecimento do processo formativo do
Movimento. A missão e o alvo que o grupo iniciador fomentava. Que caminhos
trilharam os pais adventistas para implantarem o Movimento no mundo e aqui na
Região? Por que se submeteram a vir para um local extremamente perigoso e de
difícil acesso? Que base bíblica possuíam para sustentar seus discursos?
Qualquer fiel que conhece sua origem tende a ser um adorador de proa.
RR: O perfil
@historiagrapiuna, no Instagram, tem sido um canal de educação histórica
no ambiente digital. Como nasceu esse Projeto?
CJ: Da inexistência no
Instagram de um perfil que se preocupasse com nossa rica história. Surgiu durante o período da Pandemia da
Covid-19, na minha ociosidade laborativa pecuniária. Hoje (maio/2025), são
11.000 seguidores. Considero um grande feito, em se tratando de um espaço que
se ocupa da História, Memória, Literatura e Arte Regional Cacaueira.
RR: Você é um leitor
atento e grato aos autores da Literatura Grapiúna. Que nomes mais o
influenciaram e por quê?
CJ: Elencar nomes é
certamente perigoso, corro risco de cometer graves injustiças. Mas, vejamos:
João da Silva Campos, que se preocupou em aglutinar registros hemerográficos regionais; Jorge Amado, o paladino da verve e dos tipos humanos grapiúnas; Cyro de Mattos, a maior representação viva da Literatura Cacaueira; Hélio Pólvora, um mágico das crônicas; Euclides Neto, cujos escritos falam da vida, da gente comum e ainda exalam a justiça social; Adylson Machado, dono de um vocabulário consistente e de uma escrita refinada; Sosígenes Costa, dificilmente surgirá outro igual.
RR: Você ocupa a cadeira
34 da ALITA, cujo patrono é Jorge Calmon. Poderia falar um pouco sobre seu
patrono?
CJ: Calmon é baiano,
nascido em Salvador, em 1915. Foi jornalista, político, escritor, historiador e
professor. Escreveu e promoveu a cultura com afinco, a ponto de ser reconhecido
como o último grande mecenas baiano quando nos deixou, em 18 de dezembro de
2006. Atuou no Jornal A Tarde, Instituto Histórico e Geográfico da Bahia,
Universidade Federal da Bahia, Academia de Letras da Bahia, Associação Baiana
de Imprensa, Tribunal de Contas do Estado da Bahia e Assembleia Legislativa da
Bahia. Estas são suas obras publicadas em vida: Sua bibliografia inclui: A
Flotilha Itaparicana, Problemas da
Indústria do Jornal, Manoel Quirino, político e jornalista, Grã Colômbia
Vista e Comentada: Notas de um cronista às vezes indiscreto, Imprensas Oficiais
no Brasil: Aspectos de sua história e seu
presente, Conceito de História, A cara dos fatos, As Estradas Correm
para o Sul: A migração nordestina para
São Paulo, Promessas se Pagam com Pedra e Cal:
Crônicas de viagem, Santo Amaro: Devoção de José Silveira e A Revolução Americana.
RR: Que papel sua família tem na sua
caminhada?
CJ: A importância
benévola dos meus pais foi imensa. É aflitivo para o ser humano não ter sido
oriundo de uma família equilibrada que lhe serviu de base, de norte e de aio.
Agradeço ao Eterno por ter me concedido tal mercê.
RR: Como você vivencia a transmissão de valores dentro da sua casa? Há ensinamentos dos seus pais que hoje você busca passar aos seus filhos?
CJ: Penso nisto todos os
dias. Na verdade, em tudo que faço procuro repeti-los no seio familiar.
Por fim, o que você
espera que permaneça de sua contribuição — não apenas como escritor ou
historiador, mas como homem, cidadão e servo de Deus?
CJ: Anelo não ser pedra
de tropeço. Espero ser, mesmo de forma pálida, um imitador do Cristo. Raquel,
quem não vive para servir, não serve para viver.
Deuteronômio 16:19,
serve como um lema para todo o que defende o ideal cristão: “Não pervertam a
justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até
os sábios e distorce as palavras dos justos”.
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